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Rodolfo Lima

MEDEIA NEGRA - Ilusões na sala escura


Não há nada mais interessante no teatro do que um artista entregue. Solos são uma possibilidade potente de apreciar as potencialidades individuais. É uma faca de dois gumes e antes de mais nada, um ato de coragem. É como se a necessidade de falar e ser ouvido deixasse submerso qualquer questão aquém do que o tal “lugar de fala”. Que no caso de mulheres e da população LGBTQI+ se tornou uma urgência latente.

A atriz baiana Márcia Limma integrou a programação de 50 anos do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto – FIT e trouxe um discurso forte e de emponderamento para as mulheres que compartilharam com ela, seu olhar para uma das mais clássicas personagens femininas do teatro: Medeia. A mulher que traída por Jasão, se vinga matando os próprios filhos. Esse arquétipo da mulher que se levanta e diante do opressor reage de forma trágica é um potente calabouço criativo.

Márcia não só dá nome as suas origens – mulher, negra, lésbica, mãe e candomblecista – como conclama as mulheres na plateia a fazerem o mesmo. Diante de sua Medeia Negra, um misto de animal e entidade, o público a ouve e se comove. A dramaturgia, escrita em dupla por Márcio Marciano (Coletivo de Teatro Alfenim,PB) e Daniel Arcades (Grupo NATA -Núcleo Afrobrasileiro de Teatro de Alagoinhas, BA) no afã de abranger muitos dos dilemas impostos pelos corpos femininos, se torna impostado e por vezes se distância dos dramas mais básicos da personagem de Eurípedes, escrita em 431 a.C. Mesmo levando em consideração que a personagem serviu de mote para questões mais profundas em torno da mulher, certo proselitismo está presente.

A Medeia de Márcia está para além de questões maniqueístas, que reduzem uma questão ou um ser humano a rótulo poucos esclarecedores como bom ou mal. Não há ódio em sua fala, embora seu corpo carregue as marcas do apagamento, o racismo e as dores de ser mulher. A atriz quer falar por todas, atingir o máximo de mulheres que puder. Não à toa, a disposição da plateia que divide homens e mulheres, tem nessa última muito mais espaço do que o destinado ao universo patriarcal.

A direção sob responsabilidade da mítica atriz do grupo gaúcho Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis, RS, Tânia Farias, potencializou a possibilidade de entrega de Márcia. Já que uma composição catártica de suas personagens é marca registrada de Tânia. Parece a escolha acertada. Tânia guia Márcia por caminhos onde a atriz explora corpo e voz, nos emociona e nos provoca, canta e narra sua dor, como que se a dividindo conosco pudesse dignificar outras Medeias.

Não há nada mais interessante no teatro do que uma artista que consegue ampliar sua voz. Medeia Negra é portanto a possibilidade de Márcia da busca por dialogo e acolhimento. Seu corpo age como uma faca sem corte, quando se aproxima de outras mulheres. A sororidade é substância básica presente na apresentação. Amparada pelos seus orixás, temos uma atriz dona si mesmo, e quanto a essa verdade que pulsa em cada gota que brota do corpo da atriz, nada podemos fazer a não ser se curvar e respeitar.

Que no caso de tantas notícias de feminicídio e racismo que ainda imperam na sociedade brasileira, o solo é um pungente exemplo do quanto a questão do feminino e de cor de pele precisa ser revista e repensada.

Além de Medeia Negra, a edição do Festival, incluiu em sua programação “Violento” e “Buraquinhos“, trabalhos nacionais que verticalizam a questão negra em cena, além das performances da atriz transgênera, natural de Gana (África), Vana-Bene Fiatsi, além do musical “Elza“,sobre vida e obra de Elza Soares.

No segundo e último dia de apresentação, só havia 3 mulheres negras numa plateia de mais de 100 pessoas. Compartilhar o olhar de Márcia na busca por suas semelhantes, foi emblemático e pontual. É como se na busca ela atestasse para nós, como parte da população negra ainda permanece a margem. E o melhor, nada é imposto na presença de Márcia. Seu corpo-político nos convida a pensar. E se o racismo é relacional, pois depende do ângulo que você o observa. Talvez naquele momento em que a atriz chora no colo de outra mulher negra, alguém do público entenda que o que o diferencia da atriz é apenas uma questão de perspectiva.

Rodolfo Lima

Crédito foto: Ricardo Boni

Obs: O jornalista viajou a São José do Rio Preto a convite do Festival

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