Uma das partes mais interessantes do espetáculo “Medeia Negra” é o antes. Antes que luz, som e corpo adentrem espaço e público, a separação da plateia entre aqueles que por algum motivo identifiquem-se com o gênero masculino e aqueles que por algum motivo identifiquem-se com o gênero feminino, cria uma atmosfera em que tudo que se pode fazer é encarar. De frente um para o outro, masculino e feminino observam-se cheios de histórias e significados até Medeia e seus inquietantes espasmos dominarem o palco.
No monólogo da insurgente mulher, a todo o momento a personagem enfrenta suas feridas abertas representadas pela figura masculina, enquanto fortalece seu exército de mulheres. Alternados em luz e sombra, o público é atingido pelas fortes expressões da atriz Márcia Limma, que divide subjetividades para além da endurecida carne outrora chicoteada. Medeia representada por uma mulher negra retira a memória do lugar, amplia o grito encurralado e ressignifica o símbolos da luta feminina. A mulher-mito é retratada por meio da imagem da energia ancestral feminina e africana, única força capaz de desmantelar a ordem exploradora com sua justificável vingança.
A Medeia negra carrega a dor do mundo, conhece as entranhas da barbárie, faz nascer e morre todos os dias, tem filhos arrancados da vida pelos sentimentos miseráveis, seu sangue jorra enquanto destrói e constrói reinos. Cansada, ela se arrasta até estar de pé e deixar o público feminino também de pé frente aos filhos desleais do patriarcado. O ápice vem depois do processo de entendimento da força do útero-núcleo, da matriarca, curandeira, feiticeira, guerreira Iansã, Nanã gênese do mundo. A descendente do sol, mesmo traída e renegada, jamais perderá, e como mulher sabe-se divina e mais forte não do que homem de carne, mas do que o símbolo masculino de dominação e poder, do que o símbolo da ordem que acumula e extermina, do que machismo, racismo, colonialismo e todas as ferramentas de opressão.
Dirigido por Tânia Farias, a montagem comemora dezoito anos do Grupo Vilavox dialogando com as grandes transgressões do enredo clássico de Eurípedes e das lutas sociais do agora e sempre. A peça compromete-se também com a descolonização da arte, quando, por meio de seu texto, elementos cenográficos e elenco, subverte conhecimentos universais e os entende por África e as filhas da diáspora. Não só emocionante, necessário.
Texto: Anna Claudia Magalhães Fotos: Ricardo Boni
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